top of page

Durante o Regime Militar (1964-1985), a maior epidemia de meningite bacteriana do país atormentou a cidade de São Paulo durante 7 anos, a ponto de registrar 50 casos por dia 

Por: Tainara Cavalcante

A meningite escondida na ditadura 

Escondida na ditadura

​Pense no seguinte caso: você acorda com uma dor na nuca e entra em pânico, passa um tempo, percebe que está bem e se acalma. Arruma-se para ir ao trabalho, entra em um ônibus e prende a respiração ao passar em frente a um hospital, até fecha a janela. Você e todo mundo conhece pelo menos um amigo ou parente que está com meningite, mas o governo do “milagre econômico” diz que está tudo bem. 

 

Essa foi a situação vivida nos anos 1970 na cidade de São Paulo. Em 1974, a doença meningocócica chegou a 563 casos por 100 mil habitantes - isso apenas em crianças com menos de um ano de idade. Em julho do mesmo ano, eram mais de 1.000 casos por mês, uma média de 50 por dia.  A situação era desesperadora. 

 

Ao longo da história paulistana, houve quatro epidemias de meningite: A primeira aconteceu de 1920 a 1926 em decorrência da pouca higiene local e insalubridade, assim como várias outras doenças.  Poucos anos depois, devido ao pós-guerra na década de 1930 a doença invadiu a Europa e não demorou muito para chegar ao Brasil.  Ela começou em 1945 e durou sete anos. A terceira durou mais sete e ocorreu na ditadura de 1964 com três tipos da doença de uma vez. O Governo tentou censurar e escondê-la, mas a doença se agravou tornando-se a maior da história do País. A quarta e última se deu no final da década de 1980 e foi a mais resistente e mais longa: durou 13 anos.  

 

Porém, a terceira epidemia foi a maior e mais devastadora do País. Ela começou no auge do Regime Militar, a partir das áreas mais pobres, até estar em toda a cidade de São Paulo. Na época, não existiam vacinas, mas o maior problema era estrutural. Apenas o Hospital Emílio Ribas, localizado no centro de São Paulo, tinha condições para fazer exames e internações de meningite.  

 

José Cássio de Moraes, professor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa (FCMSC), trabalhava na Secretaria Municipal de Saúde na década de 1970. Ele viu a ditadura censurar a divulgação dos pacientes e mortos e, com isso, agravar ainda mais a situação.  “Como não havia dados, não houve nenhum preparo para conter a epidemia. O Hospital Emílio Ribas tinha apenas 400 leitos e fechou as portas e você não tinha um sistema de acolhimento dessas pessoas para outro lugar”, conta. 

 

No pico do agravamento, em 1974, o hospital, que é especializado em doenças infecciosas, chegou a atender até 1.200 pacientes. Segundo dados do IBGE coletados anos depois, entre os anos de 1972 e 1973, o município de São Paulo tinha mais casos que a incidência de países inteiros, como Espanha, Estados Unidos, Inglaterra e Itália. O Emílio Ribas só deixou de ser o único hospital a atender casos de meningite no final da década de 1980.

Como o diagnóstico da doença só é confirmado com o exame de líquor,  não poderia ser feito em qualquer unidade de saúde. Pensando nisso, a Secretaria de Higiene da Prefeitura do Município disponibilizou o Hospital Infantil Menino Jesus, localizado na Bela Vista, assim como o Hospital Tatuapé, para receber todos os casos de doenças transmissíveis. Assim, o Emílio Ribas estava mais acessível para atender apenas a doença meningocócica.  

 

Criou-se também uma rede hospitalar com sete unidades ao todo, em que os pacientes tinham o primeiro atendimento no Emílio Ribas e, quando o diagnóstico era feito, eram enviados para estes pontos. No entanto, o hospital passou a devolver pacientes encaminhados de outros municípios e até do interior do Estado por não ter condições e estruturas para atender tanta gente.  

“A epidemia de doença meningocócica apenas desvendou o que era a forma habitual do funcionamento do sistema de saúde na sociedade brasileira. Exatamente por ter ocorrido no Estado mais rico da federação e na região metropolitana de maior importância para o país, é que a situação mostrou-se tão drástica.” Meningite: Uma Doença Sob Censura? - pg 101 

ilustração estadão.jpg

Em 1974, o governo do Estado divulgou o custo médio do tratamento de cada doente, que chegava a cinco mil cruzeiros. A superlotação do Emílio Ribas foi fortemente explorada pelos meios de comunicação, como o Jornal o Estado de S. Paulo. A matéria feita no dia 19 de Julho dizia:

​

 “Colchões espalhados pelos corredores, crianças colocadas sobre as pias de laboratório, médicos ajoelhados no chão para atender os doentes –esta cena que se repete no Hospital Emílio Ribas há quase um mês, atingiu nos últimos dias os seus momentos mais dramáticos. Já são quase mil os pacientes com meningite internados no hospital –o dobro de sua capacidade –e, diariamente, ele recebe cerca de 100 pessoas com sintomas da doença.” 

Ao lado, notícia de 19 de julho de 1974

Censura

Quando a situação começou a sair de controle, a Secretaria Municipal de Saúde parou de divulgar os dados, mas essa recusa não era uma medida eficaz para esconder a epidemia. Então, passou-se a censurar os meios de comunicação, com a justificativa de “segurança nacional”. 

 

José Cássio de Moraes complementa que essas medidas deixaram a população totalmente desinformada e com medo, desencadeando um verdadeiro caos. Na época, houve um grande consumo inadequado de antibióticos que, consequentemente, deixou a bactéria da meningite mais resistente, de acordo com o livro “Meningite: Uma Doença sob Censura?”. Em uma semana, uma farmácia na zona sul da cidade havia vendido mais de 500 mil comprimidos a base de sulfa, um componente de antibiótico para doenças infecciosas. Em 1975, mais de 70% de pacientes que estavam isolados apresentaram resistências aos antibióticos.

A edição semanal da revista Veja do dia 31 de Julho foi censurada por apresentar fotos da situação precária do Hospital Emílio Ribas. O veículo foi obrigado a tirar todas as edições de circulação. No entanto, isso não a impediu de continuar denunciando. No ano seguinte, estampou a capa da última semana de Abril com o tema “Meningite A batalha decisiva” 

Censura
CAPA 1.jpg
CAPA 2.jpg

Revista censurada em 1964 pelo governo

Revista publicada em 1965 

A pesquisadora conta que uma parte importante da sua análise social deu-se pelos meios de comunicação. Como pouca gente lia, ela conseguiu olhar para a epidemia além do aspecto de saúde pública com uma conotação política e social. “A minha sorte é que como o Brasil ainda tinha uma quantidade muito grande de analfabetos e poucos leitores, os jornais foram menos censurados que a televisão e o rádio, que não podiam falar da existência da epidemia. No jornal, como eles sabiam que pouca gente lia, havia um pouco mais de tolerância com a cobertura da epidemia.” 

 

Outra coisa que ela deixa claro em seu trabalho é a letalidade da doença, que, apesar de parecer contraditório, é mais frequente fora de períodos epidêmicos. “Quando não há um surto ou epidemia, você vai pensar mil coisas antes de achar que é meningite”, complementa.  

Teste em massa

Nos anos 1960 e 1970, não era só o Brasil que enfrentava o fantasma da meningite.  Uma onda de surtos epidêmicos atingiu também a Europa, os Estados Unidos, o Canadá, alguns países asiáticos e o Cinturão Africano da Meningite, praticamente todo o mundo estava infectado com a doença.   

 

A Secretaria de Saúde do Estado usava os dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre o que estava acontecendo em outros lugares para justificar a epidemia no país e dar uma falsa impressão de que a doença estava pior lá fora. Entretanto, segundo a pesquisadora Rita Cássia em seu livro, o Brasil não notificou casos da doença meningocócica para a OMS. 

No começo da década de 1970 já haviam desenvolvido uma vacina contra a meningite.  No entanto, era apenas para o uso de militares norte-americanos. Apesar de ter sido testada em mais de 124 mil crianças no Egito, não estava disponível para comercialização. O governo brasileiro, pressionado por uma resposta, conseguiu uma doação dos Estados Unidos, de 200 mil vacinas para o teste em crianças. 

 

Porém, a vacina era desconhecida. Muitas mães recusaram autorizar o experimento porque tinham medo dos resultados ou receio de que seus filhos recebessem o “placebo” no teste. Consequentemente, os resultados foram insatisfatórios e a Secretaria da Saúde responsabilizou os meios de comunicação.  

A pesquisadora e professora da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa (FCMSC) Rita Cássia Barradas Barata pesquisou em seu mestrado sobre a epidemia de meningite na cidade. Recebeu um convite para transformá-lo em um livro, publicado em 1988 com o título Meningite: Uma doença Sob Censura?. “Eu estava fazendo o meu mestrado e pretendia fazer um trabalho bem teórico sobre as técnicas de detecção de epidemia, mas ao longo do meu curso eu fui mudando para estudar a epidemia como um fenômeno social”, conta. 

 

Ela trabalhou no hospital Emílio Ribas e atendeu muitos casos durante a epidemia. Foi aí que surgiu a ideia de estudar a meningite. Rita conta que o secretário de saúde na época, Getúlio Lima Jr., recusava admitir a existência da epidemia e por isso não divulgava o número de pacientes. Sendo assim os dados eram coletados pelos próprios médicos. 

Teste em massa
ilustração estadão 2.jpg

Matéria do Estado de S. Paulo do dia 19 de dezembro de 1972

Depois do fracasso dos testes em crianças, não se falou sobre a vacina até que os casos praticamente explodiram em 1974, inclusive os mais velhos. A taxa de incidência para maiores de 50 anos chegou a uma média de 51 a cada 100 mil habitantes. 

Vacinação em massa

Em 1974 quando os casos confirmados chegaram a 1.400 apenas em um mês, o governo do Estado declarou publicamente que estava investindo 23 milhões de cruzeiros em mais de 10 milhões de doses para vacinar crianças até seis anos, as principais afetadas pela epidemia. 

 

Mesmo sem um teste eficaz no país, a pressa por uma vacina se dava pela falta de estrutura nos hospitais superlotados e o custo do tratamento de cada paciente: os gastos com apenas uma pessoa, poderia pagar cerca de 2.500 doses da vacina, de acordo com o livro da Rita. 

 

O lote veio direto do Instituto Merieux, da França, que também vendeu, em outubro do mesmo ano, mais 60 milhões de doses para uma vacinação em massa. O instituto teve que ampliar os laboratórios e aumentar a produção mensal para atender tanta gente.   

 

Em abril de 1975, o Governo vacinou a maioria cidade em apenas quatro dias. O processo realizado pelo exército brasileiro era tão rápido que não entregavam nem mesmo comprovante. “Mas ninguém sabia bem se aquilo iria ser suficiente para interromper a epidemia. Porque a vacina era feita de uma tal forma que ela não conferia imunidade duradoura, no máximo um ano. E como a meningite é uma doença de transmissão respiratória, dois a três dias iria ter novos casos. O único jeito de interromper uma epidemia, era vacinar todo mundo ao mesmo tempo”, complementa a pesquisadora Rita Cássia. 

 

Na década de 1970, a cidade tinha mais de 11 milhões de habitantes, e a vacinação aconteceu em regiões de grandes aglomerações, como praças. As 280 equipes vacinavam com uma máquina de ar comprimido. Só no primeiro dia, 2,5 milhões de pessoas foram vacinadas.  

 

No entanto, era de se esperar que uma vacinação em grande escala tivesse vários problemas, como as máquinas pe-do-gets quebradas, má alimentação dos funcionários e atritos quanto ao pagamento das diárias. 

 

Pouco tempo depois, o IBGE fez uma pesquisa para descobrir se a cobertura foi suficiente - a expectativa era vacinar pelo menos 80% da população.  Com uma cidade com medo e em busca de solução, a amostragem indicou uma cobertura maior que 90% nas regiões centrais, intermediárias e periféricas.

Infográfico_pedoget.png

Apesar da queda considerável de casos por conta da vacinação em massa, a epidemia de meningite terminou apenas dois anos depois. Até julho de 1977 ainda havia casos acima do esperado. Nesse tempo, a meningite C voltou ao seu estado epidêmico e a bactéria A simplesmente desapareceu. Até hoje não há notificações dessa variação de meningite. Segundo Ana Paula Lemos, do Núcleo de Meningites, Pneumonias e Infecções Pneumocócicas - (IAL) até hoje, não se sabe o motivo do desaparecimento da bactéria no ar. 

“Em nenhum momento ocorreu às autoridades que uma população permanentemente excluída do debate das questões sociais e políticas do país não tinham por que atender prontamente ao chamado do estado para se submeter a um experimento de interesse coletivo. Nunca houve noção de coletivo entre ela e o estado”. Pg 175 Menigite: Uma doença Sob Censura?

Vacinação em massa

Rita Cássia fala sobre as máquinas de ar comprimido utilizadas para conter a epidemia

bottom of page